De Ibirama, no Brasil, a Yishun, em Singapura. De Sandvika, na Noruega, a Dunedin, na Nova Zelândia. A carreira de Lutz Pfannenstiel é um mapa do futebol mundial e cada carimbo no passaporte é como um troféu. “Sou um camaleão. Metam em qualquer lugar que eu, de alguma forma, vou me adaptar”, disse em entrevista ao jornal português PÚBLICO. O alemão de 43 anos, que um dia quis passear na rua com um pinguim, como se fosse um cão, é o exemplo de como não há regiões remotas no que diz respeito ao futebol: representou 25 clubes em 12 países, ao longo de uma carreira que atravessou todos os continentes. O ex-goleiro passou por times das seis confederações que integram a FIFA, o que faz dele um caso único na história do futebol.
“Não sabia que acompanhavam a minha carreira em Portugal!”, exclamou Lutz ao atender o telefone. E começa logo com uma revelação: “Tive a possibilidade de jogar num clube português, no Boavista. Houve uma conversa para jogar lá, por empréstimo do Nottingham Forest, mas nunca chegou a ser feita uma proposta e portanto nunca joguei em Portugal. Mas conheço gente aí, o Stefan Schwarz é um dos meus melhores amigos. Também conheço o Antônio Veloso. Teria sido interessante jogar em Portugal”, admitiu o alemão, que atualmente é diretor de relações internacionais do Hoffenheim, além de dar formação de goleiro para a FIFA e para a Federação alemã e de fazer comentários televisivos.
Aos 43 anos, Lutz pode estar aparentemente mais calmo. Mas continua a ter a mesma paixão pelo futebol que o fazia, ainda criança, ficar acordado até tantas horas para ver os resumos dos jogos na televisão. Ou que, aos 18 anos, o levou a dizer não ao Bayern Munique e a deixar o país e a família para trás e rumar à Malásia. “Sei que tomei decisões muito estranhas ao longo da minha carreira. Por exemplo, não aceitar ficar no Bayern Munique. Mas, em retrospectiva, não me arrependo de nada. Absolutamente nada. Tudo o que fiz ajudou-me a ser o que sou hoje, no futebol e fora dele”, sublinhou.
Negar um colosso como o Bayern exigiu coragem, admite: “Na época ofereceram-me um contrato amador e a possibilidade de integrar a equipe de reservas. Mas porque havia eu de aceitar isso? Disseram-me claramente que eu era jovem e tinha talento, para mim não fazia sentido ir para a terceira divisão. Talvez tivesse surgido uma hipótese ao fim de algum tempo, nunca saberemos. Foi uma das maiores decisões da minha vida. Os meus pais pensaram que eu tinha enlouquecido. Ninguém queria acreditar. E, quando estávamos indo para casa, disse-lhes: ‘Não vou ficar na Alemanha. Vou para a Malásia’. No início eles pensaram que era uma piada. Mas depois temeram que eu estivesse louco.”
Salto para o desconhecido
Rumar a Oriente foi um salto no desconhecido para o jovem Lutz. “Eu não sabia nada sobre a Malásia, só que ficava na Ásia. Mas não me importava, decidi ir e logo veria o que acontecia”, lembrou. O que aconteceu foi o seu primeiro contrato profissional, assinado com o Penang: 6000 dólares mensais mais bônus por cada vitória, carro e apartamento num hotel junto à praia, contou em sua autobiografia The Unstoppable Keeper (sem edição brasileira).
Durante uns meses, esteve tudo bem – a vida corria de feição e Lutz até chegou a ter um “part-time” como DJ num clube noturno. Mas o sonho de jogar nos principais palcos continuava lá. E surgiu a hipótese de rumar à Premier League para juntar-se ao “crazy gang”, como era conhecido o Wimbledon de Vinnie Jones e companhia, que anos antes conquistara a Copa da Inglaterra. Mas a concorrência era dura e o alemão nunca passou da equipe de reservas. Lutz voltou à estrada: passou por África do Sul, Singapura, Finlândia e regressou brevemente à Alemanha.
Lutz não resistiu muito tempo no seu país e, depois de rejeitar no último instante a hipótese de representar um clube e a seleção indonésia, regressou a Singapura para o Geylang United. E viveu um dos episódios mais negros da sua carreira e da sua existência. Num mal explicado escândalo de apostas ilegais, foi julgado e condenado por manipulação de resultados. “Servi de bode expiatório. Queriam limpar o futebol e precisavam de culpar alguém. Eles não tinham provas contra mim: não aceitei dinheiro e não fiz nada de errado. Mas eles disseram que estava provado que eu tinha a intenção de o fazer. Como é que se prova uma intenção? Era tudo tretas”, recordou.
Passou mais de três meses preso, algo que ainda lhe dá pesadelos: “Foi como estar no inferno, era considerada uma das prisões mais duras a nível mundial. Eramos tratados como animais, não como seres humanos. Tive de lutar para me defender, fui muito maltratado. Os tipos ao meu lado tinham matado gente, traficado droga ou violado alguém. Sabiam porque estavam ali. Eu não”, disse com um tom de voz desolado, para acrescentar: “Após 101 dias fui libertado e mais tarde fui inocentado de tudo. Não tenho registo criminal. Para Singapura sou um criminoso, mas para o resto do mundo estou limpo. Tudo bem, não quero saber de Singapura. Posso acordar todas as manhãs e dizer: fui injustamente tratado e estive preso sendo inocente. Depois de tudo pude trabalhar nos EUA, na Austrália, no Canadá. Países onde é complicado trabalhar se tiver cadastro criminal.”
“Quando voltei para casa, depois de estar na prisão, tinha menos 16 quilos. Era uma pessoa diferente. Aprendi muito sobre mim próprio, sobre o mundo. E tornei-me numa pessoa melhor”, concluiu Lutz, para encerrar o assunto. O episódio deixou marcas profundas no alemão, que confessou ter temido pela vida em várias situações na sua carreira: “Claro, em muitos países. Na Ucrânia, no Brasil, na Albânia… Tive um criminoso a apontar-me uma arma à cabeça na África do Sul.”
Pinguim de estimação
Mas Lutz Pfannenstiel não é homem para ficar triste muito tempo. Relançou a carreira no Dunedin Technical, na Nova Zelândia, e o entusiasmo volta à sua voz quando a conversa chega a um dos seus episódios mais caricatos: o rapto de um pinguim. “Tenho de dizer que gosto mesmo muito de animais. Quero tocar em todos os que me aparecem à frente, mesmo que me mordam. O presidente do clube levou a equipe a uma colônia de pinguins. Gostei, mas não pensei mais naquilo até chegar a casa, à noite. Fiquei pensando quão interessante seria ter um pinguim em casa. Ou passear com o pinguim na rua, como um cão. Vesti roupas escuras, voltei lá, peguei num pinguim e voltei para casa. Depois tive de improvisar: peguei em vários sacos de gelo, água e pedras e meti tudo na banheira. Mas o pinguim não parecia muito satisfeito. Claramente pensava: ‘Que merda estou fazendo aqui?’”
“No dia seguinte, o presidente almoçou lá em casa e precisou de usar a casa de banho. Eu disse-lhe: ‘Não se assuste com o pinguim que está lá. Tenho um novo animal de estimação’. Deve ter pensado que estava “de zoeira”, mas quando o viu na banheira acreditou. Disse-me que era uma espécie protegida, que se a polícia me pegasse com o pinguim iriam me expulsar do país. Não tive escolha, levei o pinguim de volta. Só o tive durante 24 horas”, lamentou Lutz, acrescentando com uma gargalhada: “Mas tenho de dizer que o pinguim não era muito amigável, estava sempre tentando me morder e cheirava muito mal. Cheirava a peixe.”
No fim da primeira temporada na Nova Zelândia, Lutz rumou à Inglaterra, onde a então companheira tinha família. Para manter a forma começou a treinar com o Bradford Park Avenue, e acabou por disputar algumas partidas pelo time da sétima divisão. A mais marcante de todas aconteceu no dia seguinte ao Natal, em 2002. O goleiro alemão chocou-se violentamente com um adversário e parou de respirar. Três vezes. Salvou-o a rápida assistência médica. “Foi uma bola disputada e me choquei com o atacante. Ele não fez nada de errado, estava só a tentar chegar à bola. Eu não me lembro de nada, só de chocar e depois acordar no hospital. Comecei a espernear com a enfermeira e o médico, porque queria voltar para o jogo. Eles disseram para me acalmar, porque tinha estado morto. E só duas ou três horas depois é que me apercebi que tinha sido uma situação realmente grave”, admitiu.
Terminar a carreira depois dessa experiência nunca lhe passou pela cabeça: “Uma semana depois voltei a jogar. Tinha de ser, se ficasse pensando que podia estar morto ia ter medo. Eu não queria pensar mais naquilo, só queria jogar.”
Os anos foram passando e, após uma fase “absolutamente louca, em que estava mudando de clube a cada seis meses”, Lutz preparava-se para assentar no Canadá. Os Vancouver Whitecaps tinham-lhe dado um contrato com a perspectiva de ficar como treinador de goleiros após terminar a carreira. E então surgiu uma notícia que obrigou o alemão a fazer de novo a mala: “O meu agente disse-me que eu era a única pessoa que podia jogar em países das seis confederações se fosse para a América do Sul. Não era algo que eu quisesse verdadeiramente fazer, estava muito feliz no Canadá e estava mentalizado que seria o meu último clube. Mas havia um sonho que eu tinha desde criança, que era estar no Maracanã a jogar pelo Flamengo”.
“Eu não sabia que o Brasil ia ser um país que mudaria a minha vida. Pensava que não ia gostar de jogar lá. Mas hoje sei que foi uma boa decisão. E aprendi algum português, conseguia entender os brasileiros. Mas, como jogava futebol, as primeiras palavras que aprendi a dizer foram: esquerda, direita, porra e caralho”, atirou Lutz com uma gargalhada. O feito de ser o primeiro futebolista a atuar nas seis confederações da FIFA foi alcançado a serviço do modesto Atlético Hermann Aichinger, de Ibirama, no estado de Santa Catarina. A paixão pelo Brasil ficou para sempre: “Amo o país. As pessoas são extraordinárias, têm a luz do sol dentro delas. Estão sempre felizes. Claro que há crime, mas em geral os brasileiros são boa gente.”
Os “loucos” albaneses
Tendo visto quase tudo ao longo da carreira, Lutz não tem dúvidas em eleger os albaneses como os torcedores mais loucos que conheceu. “Lá não há meio-termo, é preto ou branco. Ora é um herói, ora te detestam. Jogar fora de casa era uma loucura. Na Alemanha ou em Portugal é proibido usar artefatos pirotécnicos, mas na Albânia parecia que toda a gente tinha um. E o pior é que em vez de os atirarem para cima, dirigiam-nos para baixo, para cima de nós. Eu, no gol, às vezes tinha de fugir”, contou.
No extremo oposto estão os finlandeses: “É inacreditável. As pessoas são tão frias que mesmo os torcedores de futebol parecem não querer saber. Sentam-se no estádio e, se estivéssemos ganhando, para eles é ‘oh, muito bom…’ Se estivéssemos a perder, eles dizem ‘oh, muito mau…’ Não há grande emoção, limitam-se a estar lá. Durante um ano sentava-me ao lado de um tipo no balneário. E as únicas palavras que trocava com ele eram ‘bom dia’ e ‘até amanhã’. O curioso é que, se for a uma sauna com finlandeses, eles começam a beber vodka e dizem-te tudo, até o que não quer saber”, atirou com uma gargalhada.
Eram vários os rituais e superstições que o alemão respeitava, mas um deles ia correndo mal. “Vestia-me sempre pela mesma ordem e toda a vida joguei com meias brancas. Houve uma vez que perguntei ao roupeiro se tinha meias brancas e ele disse que sim. Mas depois deu-me meias pretas para jogar. E eu disse que não podia ser, assim não jogava. Peguei em fita adesiva branca e cobri as meias com ela, do joelho até a chuteira. Mas aquilo ficou muito apertado e passada meia hora estava perdendo a sensibilidade nas pernas e não conseguia chutar a bola em condições”, recordou.
Vedetismo é uma palavra que não entra no dicionário de Lutz: “Claro que a minha carreira foi um pouco diferente. Não joguei pelo Barcelona nem pelo Manchester United e na Liga inglesa não passei do banco de suplentes. Sei que nunca fui um grande goleiro. Não acho que fosse um mau goleiro, e até poderia ter jogado a um nível mais alto se não fosse tão… diferente”, afirmou. A história de Lutz é a de um “futebolista real que não andou pelos campeonatos de topo”. “Há centenas de milhares de profissionais com vidas assim em todo o mundo, que têm de lutar todos os dias pelo contrato, para manterem o lugar na equipe. Que jogam perante umas centenas de torcedores, mas que treinam tão arduamente quanto os outros. Os que chegam aos clubes de topo são uma minoria”, frisou o ex-goleiro.
As memórias da prisão e a vontade de “fazer algo bom pela sociedade”, levaram Lutz Pfannenstiel a lançar uma iniciativa de proteção do ambiente e sensibilização para as alterações climáticas. Mas a organização Global United FC não se limita a isso: “Quando vais a alguns países e vês crianças órfãs, que passam fome e não têm acesso a educação, onde a AIDS faz parte do cotidiano, não podes falar-lhes de alterações climáticas e ambiente. Tentamos construir escolas, assegurar alimentação, fazemos trabalho social”. Em 2012, à margem de uma cimeira ambiental, o alemão passou quatro dias fechado num iglu a sério. “Estava um frio do caraças. Estive lá dentro quatro dias, 24 horas por dia. Foi muito difícil. Mas foi ideia minha, tinha de fazê-lo. Não podia dizer que queria sair porque estava com frio. Correu tudo bem, sobrevivi”, rematou o inigualável alemão. Talvez no iglu ele e o pinguim pudessem ter sido felizes.
O percurso de Lutz Pfannenstiel
AFC (Ásia) Penang FA (Malásia) Sembawang Rangers (Singapura) Geylang United (Singapura)
CAF (África) Orlando Pirates (África do Sul) Ramblers (Namíbia) *jogador-treinador Selecção da Namíbia *treinador de goleiros
CONCACAF (América do Norte, Central e Caribe) Calgary Mustangs (Canadá) Vancouver Whitecaps (Canadá) Seleção de Cuba *treinador de goleiros
CONMEBOL (América do Sul) Clube Atlético Hermann Aichinger (Brasil)
OFC (Oceânia) Dunedin Technical (Nova Zelândia) Otago United (Nova Zelândia)
UEFA (Europa) 1. FC Bad Kötzting (Alemanha) Wimbledon (Inglaterra) Nottingham Forest (Inglaterra) TPV Tampere (Finlândia) FC Haka (Finlândia) Wacker Burghausen (Alemanha) Bradford Park Avenue (Inglaterra) Huddersfield Town (Inglaterra) ASV Cham (Alemanha) Baerum SK (Noruega) KF Vllaznia Shkodër (Albânia) FC Bentonit Ijevan (Arménia) *jogador-treinador Flekkeroy IL (Noruega) FK Manglerud Star (Noruega) Hoffenheim (Alemanha) *diretor de relações internacionais
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