top of page
  • Caio

O INATO E O ADQUIRIDO - QUESTÕES RELATIVAS À ALTURA DOS GOLEIROS

Atualizado: 6 de jul. de 2020


Mesmo antes de iniciar meus estudos científicos a ideia de dom, de talento nato, ou seja, as questões relativas ao inato e o adquirido, sempre me inquietaram.


Lembro-me de que, quando pequeno, era inconcebível aceitar que alguém poderia jogar melhor do que eu. Mas, apesar de inadmissível para mim, na realidade isto sempre acontecia. Eu nunca era o melhor em nada, logo parecia não ter talento para nada. E pensava: será que vim ao mundo para ser mais um? O tempo passou… a realidade não mudou, porém me confortei (não me resignei) quando iniciei meus estudos na universidade. Depois de muitos livros e ainda longe de conhecer toda a complexidade humana, a ciência hoje consegue explicar, ou melhor, criar algumas hipóteses fundamentadas a respeito de tal temática. Por exemplo, um livro muito interessante sobre o inato e o adquirido é a Tripla Hélice, de autoria do cientista da Universidade de Harvard Richard Lewontin, em que o autor apresenta uma nova visão sobre as relações entre o organismo e o meio, leia-se, o inato e o adquirido.


Antes das provocações pertinentes de Lewontin, os cientistas utilizam a metáfora do balde para ilustrar esta temática. Eles diziam que todos nascemos com um balde, contudo cada um possui baldes de diferentes tamanhos, representando, assim, de forma figurada, nosso potencial genético de inteligência (entenda por: capacidade de resolver problemas). Mas de nada vale um potencial grande, ou seja, um balde que cabe muitos litros, se o ambiente não for rico o suficiente para enchê-lo, e mesmo completá-lo com um conteúdo de qualidade.

Sendo assim, um grande potencial genético pode não ser tão inteligente quanto uma pessoa que, até apresenta certas restrições potenciais, porém sabe aproveitar o que o ambiente lhe proporciona, demonstrando maior capacidade de adaptação, logo, segundo a lógica da seleção natural a sobrevivência vital ou social sempre estará do lado daquele com maior potencial adaptativo (e não genético).


Entretanto, apesar da metáfora do balde já ser muito convincente e, respaldada por inúmeros estudos e experimentos científicos, até então mantinha-se irrefutável. Começa agora a ser atacada, não no sentido de refutá-la, mas sim de completá-la. Richard Lewontin, por exemplo, relativiza a importância dada ao genético hoje em dia, principalmente, alavancada pelo projeto genoma. Para ele os indivíduos não são determinados simplesmente pela interação dos genes (inato) e o ambiente (adquirido), mas também por eventos aleatórios que a ciência não é capaz de controlar. Nesta esteira um outro autor, também biólogo, Lyall Watson assim se manifestou a respeito do cérebro: “Se o cérebro fosse tão simples que pudéssemos compreendê-lo, seríamos tão simples que não o conseguiríamos”. Mas, escrevo estas linhas incomodado por uma conversa que sempre escutei no meio do futebol, porém ultimamente vem se intensificando e com certa freqüência vem ganhando cada vez mais força e adeptos. Refiro-me, logicamente, à altura dos goleiros como pré-requisito determinante para o desempenho, em alto nível, da função. Algumas equipes, no seu processo seletivo, estão exigindo certa altura para que o candidato a goleiro tenha chance de ser avaliado. Ilustrativamente, seria como estabelecer uma altura X, fixar um barbante no batente da porta do vestiário dos testes e se o candidato não se abaixar para passar não precisa nem se trocar, pode ir embora, pois já está eliminado.


É incrível como o futebol tem o poder de simplificar as coisas. O quanto ele, e as pessoas que estão nele envolvidas, faz do complexo uma coisa simples, limitada à causa e efeito. Para o futebol não existem um número ilimitado de variáveis, não há espaço para o caos, para a desordem, para o heterodoxo. Ou é, ou não é. Ou é alto, logo goleiro, ou então vai ser treinador de goleiros, ou mesmo, ser um torcedor frustrado.


E o que é pior ainda, as pessoas passam a acreditar que isto é verdade, que é assim mesmo. Operam com a lógica infantil, parecendo-lhes óbvio o fato que quanto maior o goleiro melhor (já que o gol no futebol é grande). Resumindo: ordem e progresso; tamanho equivalente à qualidade; altura qualifica um goleiro e, ao mesmo tempo, acaba com qualquer possibilidade de um fora da curva sequer arriscar. Desse modo, se 1,90m é a altura do barbante, quem tem 1,89m nunca servirá, é um produto fora das especificações do mercado. As justificativas são as mais óbvias do mundo: “A Europa exige jogador alto e forte”, contra-argumenta os tradicionais e conservadores dirigentes, agentes, técnicos da atualidade. “Se o goleiro for baixo, bola rasteira pode encobri-lo”, atormenta o torcedor de arquibancada, e até alguns desavisados jornalistas. Nesta caso o inato sobrepõe o adquirido. Primeiro seja alto, depois se der aprenda a ser goleiro. Se não for possível aprender, não tem importância, sendo alto você já é goleiro. Não é isso que vemos nas equipes hoje em dia? E nas categorias de base, então? Não preciso, não devo e não quero citar nomes, mas tem muito “varetão” que só sabe treinar no gol, porque na hora do jogo, no momento em que lhe é exigido aprender a ler o jogo, acabou. Mesmo porque muitos dos treinamentos de goleiro são “muito fáceis”, você não tem de pensar, é só cair de um lado para outro. 10 bolas rasteiras… 10 bolas meia altura… 10 bolas no alto… E depois alardeiam aos quatro ventos que o goleiro brasileiro não sabe sair do gol. Mas como vai aprender, ou se adaptar à situação, se as 10 bolas cruzadas livremente na área do lado direito e depois do lado esquerdo, muitas vezes nada, absolutamente nada, tem a ver com o que acontece no jogo?


Será que em vez de altura, o maior pré-requisito para o goleiro não seria aprender a ler o jogo? Se assim o fizesse, simplesmente a sua colocação evitaria inúmeras quedas. Também evitaria a necessidade de se ter uma altura determinante, pois não seria cinco centímetros a mais ou a menos que fariam a diferença para evitar o gol, mas sim, novamente, a colocação, a velocidade de reação, a força, o potencial de impulsão, o controle emocional… Mas aí temos um problema. Quantos sabem ensinar seus goleiros a ler o jogo? Como se poderia fazer isto na prática? Como ensinar a cair menos sem parecer que o goleiro não treinou? Como ensinar/treinar o goleiro a ficar atento no jogo, sendo que, na maioria das vezes, é o jogador que menos pega na bola (sendo o que mais se movimenta e pega na bola no treino)?


Por fim, gosto muito do filme Gattaca (uma ótima dica de filme sobre o inato e adquirido), e como no filme acredito no adquirido. Acredito que o homem é capaz de superar tudo aquilo que faz com afinco e determinação. Não será impondo uma limitação biológica para os goleiros, que se formará bom jogadores nesta posição. A formação de um goleiro, começa na formação de seu treinador de goleiro. Se este não for intuitivo (digo intuitivo porque existe muito pouca literatura específica sobre treinamento de goleiros), se este não for sabedor das causas e objetivos dos diferentes projetos, muito pouca coisa fará.

Portanto, no papel, cinco centímetros fazem a diferença, mas no campo, principalmente para quem já desempenhou a função com inteligência, sabe que estes centímetros são irrelevantes. Logo, superando a visão positivista, afirmo aos treinadores de goleiros parem de avaliar o goleiro (ou pretenso goleiro) pelo seu porte genético (inato).  A maior virtude de um goleiro é invisível aos olhos. As qualidades psicológicas são infinitamente mais determinantes e importantes para selecionar um bom goleiro. Contudo, estas qualidades (adquiridas) não são necessariamente mensuradas e aparentes, exigem um olhar atento, próximo, experiente, sensível e sapiente. E o que é mais importante, este olhar pode ser formado pela ciência (mas não pela faculdade empírica da bola).

Alcides Scaglia Cidade do Futebol

110 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page