Por Eduardo Vieira (@oeduardovieira) e Josué Seixas (@josue_seixas)
“Aqui é todo mundo operário da bola, é assando e comendo.”
“Futebol é cobertor curto. É cobrindo os pés e descobrindo a cabeça, cobrindo a cabeça descobrindo os pés.”
Quando o goleiro Batista saiu de Alagoas, ele já sabia que a vida continuaria sendo difícil. Sem o brilho das estrelas do futebol, muito menos o salário, ele foi um dos atletas obrigados a encarar desafios extremos na luta pelo sonho de viver do esporte.
Para o alagoano, ao pintar uma oportunidade de jogar no exterior, veio a chance de um salto na carreira. Hoje aos 33 anos, Batista está no Benfica. Não o famoso português, agora treinado por Jorge Jesus, mas o de Macau, região autônoma do sul da China.
Batista nasceu em Arapiraca, interior de Alagoas, e se criou na base do Sport. Resolveu tentar a sorte no outro lado do mundo em 2015, aos 27 anos, quando já tinha passado por nove clubes do Nordeste. Se precisava ir para Macau para fazer a vida no futebol valer à pena, ele pensou, só lhe restava fazer as malas e viajar.
“Um amigo da época da base do Sport me convidou para ir pra Macau em 2014. Eu já estava com 27 e pensava: ‘Pô eu não vou ser mais um goleiro top de linha. Vou continuar nessa vida aqui de jogar seis meses, parar um ou dois e tentar conseguir outra coisa para segundo semestre’. Era meu plano B, minha última cartada. Em janeiro de 2015, o Coruripe me liberou e eu cheguei aqui pra iniciar essa história”, relembra Batista.
A chegada foi bem difícil, segundo o goleiro. Cultura e língua diferentes eram os empecilhos na adaptação. Embora colonizada por portugueses, as principais línguas faladas em Macau são o cantonês, mandarim e inglês. No começo, Batista não falava nenhuma delas. Contou com a ajuda de brasileiros para aprender. Após cinco anos e alguns títulos conquistados pelo Windsor Arch Ka I e Benfica, já se vira bem por lá.
“Imagina um matuto de Arapiraca falando inglês e um pouco de mandarim (risos)”, brinca o jogador.
Mesmo em uma liga semi-profissional, a cartada de Batista em Macau deu certo e o salto financeiro foi consequência da escolha. O amadurecimento pessoal é o que ele mais se orgulha em falar. Entre as experiências que mudaram a vida do alagoano, ele considera que as duas viagens que fez para a Coreia do Norte definiram muita coisa. Ele viajou para disputar AFC Cup, competição continental secundária da Ásia, já com o Benfica.
“Depois que eu fui na Coreia do Norte, a minha vida se tornou mais feliz em todos os aspectos. Já no embarque em Pequim, foi aquele choque. Encontrei alguns norte-coreanos e vi a opressão na cara da pessoa. Mesmo que eles não falem nada, dá para perceber. O que me fez valorizar a vida foi justamente ver o quanto eles são controlados. Eles têm horário para estar em casa, racionamento de comida... E o mais impressionante, eles não sorriem e mal conversam entre si, parecem múmias”, conta.
Batista teve a oportunidade de andar pelas ruas da cidade de Pyongyang, capital da Coreia do Norte, gravou vídeos, tirou fotos, tudo registrado em seu perfil pessoal no Instagram. O alagoano também se surpreendeu quando viu as pessoas sinalizando 1 a 0 para ele. Fez a ligação com a Copa do Mundo de 2010, na qual o Brasil venceu os norte-coreanos por 2 a 1.
“Eles acreditam até hoje que venceram a gente por 1 a 0. Eles só assistiram ao gol deles. Quando falava que era brasileiro, eles faziam o sinal de 1 a 0 com a mão e eu ficava me perguntando, ‘Como assim?’, até que alguém me explicou a história (risos)”.
Foram duas viagens a Pyongyang. Dois jogos: uma vitória por 3 a 2 e uma derrota por 8 a 0 para o time que formava a base da seleção norte-coreana. Na primeira partida, houve rumores de que o ditador Kim Jong-Un esteve no estádio assistindo ao jogo.
“Falam que jogamos contra o time que o pai dele era torcedor. Na arquibancada principal do estádio, tem um camarote com um vidro fumê que não dá para ver quem está dentro e tinham muitos militares ao redor do camarote. Nos falaram depois do jogo que era ele que estava por lá, mas não chegamos a vê-lo”.
Além de goleiro do Benfica de Macau, Batista hoje dá aulas de futebol para crianças chinesas em uma escolinha ligada ao Grêmio, em Zhuhai, cidade vizinha a Macau. O jogador bateu um bom papo com o Yahoo Esportes e contou sobre seu começo no futebol, a vida de um operário da bola, sua trajetória em Macau e a experiência de ter conhecido o país mais fechado do mundo. Confira abaixo.
Quais suas origens no Brasil e caminhos no futebol? Eu sou alagoano de Arapiraca, nascido e criado lá. Saí de Arapiraca com 14 anos para o Sport Recife, mas tudo começou no ASA. Em 2002, fui para o Sport e fiquei até janeiro de 2007. Passei por todas as categorias e quando fui liberado estava no profissional com o Givanildo Oliveira na transição do Givanildo para o [Alexandre] Gallo. Quando o Gallo chegou, ele falou que não iria utilizar os jogadores da base. Nesse trâmite, o treinador da base tinha um pequeno problema comigo e acabou me emprestando para a Cabense e aí comecei minha peregrinação (risos).
Como é viver do futebol nesse nível no Brasil? Cara, sinceramente se torna quase impossível. Eu tive um treinador chamado Jaelson Marcelino que dizia para a gente: “Aqui é todo mundo operário da bola, é assando e comendo”. É a realidade mesmo, é recebendo aqui e pagando ali. Ele falava também: “Futebol é cobertor curto. É cobrindo os pés e descobrindo a cabeça, cobrindo a cabeça descobrindo os pés”. Tem cinco anos que saí do Brasil e tenho vários amigos que ainda jogam futebol e a realidade infelizmente só piora.
Tem que fazer uma coisa ou outra a mais, como vender roupa. Tenho vários amigos que jogavam e trabalhavam com confecções. Eles compravam roupas na 25 de março e traziam para vender aos jogadores no dia do pagamento (risos). Graças a Deus, o que eu ganhava era suficiente, não era muito, mas eu nunca tive despesas tão altas e então as contas da casa eram honradas de boa.
Como tem sido sua trajetória no futebol em Macau? Eu cheguei para jogar no Windsor Arch Ka I, onde joguei em 2015 e 2016. Depois daí me transferi para o Benfica, no segundo semestre de 2016 e estou lá até hoje. Meu primeiro contrato foi de oito meses, como experiência. Por aqui consegui ganhar dois títulos da liga e três copas. O nível não é muito alto, mas é bem disputado. Para um time que tem estrangeiros, o campeonato se torna fácil. Tem dez equipes, então são três jogos difíceis, dois mais ou menos e cinco jogos em que o time sobra. São quatro clubes que costumam contratar jogadores estrangeiros: Benfica, Sporting, Monte Carlo e o Ka I. A liga é específica do território e os dois primeiros colocados tem vaga na taça AFC Cup, uma espécie de sul-americana ou Europa League da Ásia. A liga não é totalmente profissional, até porque o “país” não tem atletas suficientes para suportar uma liga profissional. A maioria dos nossos atletas são bombeiros, policiais, ou seja, tem outra função. Por isso os treinamentos são sempre à noite e há um problema grande com espaço para treinar. Os locais que a gente treinam são locais do governo, públicos, então às vezes nós estamos treinando e de repente chegam uns caras pra bater pelada. Acaba o nosso tempo no local no meio do treino e nós temos que sair pra os caras jogarem a pelada. Foi inclusive uma das coisas que eu fiquei horrorizado no começo. Um dia o treino estava muito bom e lembrei do Brasil: quando o treino está assim, a gente segue. Mas aí o guardinha veio, apitou, todo mundo parou de repente e veio um monte de cara sem camisa, chutando bola e eu ficava: “Como assim, o que é isso?”. Os caras diziam “Acabou o horário, sai todo mundo” (risos). Mas hoje está tranquilo, já estou bem acostumado. Como é a vida em Macau? A vida é muito boa aqui, é um lugar muito bem estruturado. O pessoal costuma falar que é a terra das oportunidades. Macau foi colonizada por portugueses, foi devolvida para a China, mas ainda assim tem suas leis próprias, assim como Hong Kong e outras regiões da China. Aqui se fala que, se Macau ingressar na China de vez, acaba a economia da cidade, porque aqui é o brinquedinho deles. Os jogos de aposta são legalizados, então eles vem todos pra cá para jogar. Eles adoram jogar e gastam muito dinheiro. Eu já soube de gente que perdeu ou ganhou milhões aqui. A língua portuguesa só facilita em algumas repartições públicas ou bancos que tem muita coisa traduzida em português. Para falar, o idioma que predomina é o cantonês. Mandarim também se fala, mas, se você fala inglês, você já “desenrasca” sua vida 100%. Eu falo só o inglês e um pouco de mandarim. Em Macau, você tem a oportunidade de fazer o que você quiser. Pode ser cozinheiro, dançarino, jogador, treinador, personal trainer… Qualquer coisa que “meter a cara” para fazer aqui, dá para fazer. Mas tem que ser resiliente, aos poucos ir montando a base. E eu entendi isso quando cheguei. Assim que eu cheguei, me disseram que Macau era uma terra de chegadas e partidas e eu comecei a tentar entender o por que desse vai e vem. As pessoas chegam e acabam caindo fácil nos encantos da noite. Não digo que seja errado ir na balada, tomar cerveja, fumar cigarro, fazer o que você quiser, mas em Macau é exagerado. A noite começa 18h e vai até 9h da manhã, então pra quem vem e cai nesses encantos, acabou. Sobre mulher, para você ter noção, é você estar na rua e elas estarem brigando por você, para ver quem fica com você. Algumas ainda querem até pagar pra ficar com você. É coisa de louco! (risos). Se não tiver cabeça boa, se perde. Eu já vim num nível legal de maturidade, então não tenho problema com essas coisas, não sou de farra nem desse tipo de vida. Sou um cara bem tranquilo, dessa forma consigo aproveitar a vida próspera daqui. Financeiramente compensou a mudança do Brasil para Macau? Compensou muito. Eu vim ganhando praticamente o dobro do que ganhava no Coruripe. Sem falar que nos dois primeiros anos eu tinha quase tudo pago, como casa, comida, internet, gás, praticamente tudo. Por Macau se tratar de uma terra de jogo (cassino), o futebol não é tão valorizado. Quase não é noticiado na mídia local. Futebol não é prioridade. Quem financia geralmente são donos de cassino, donos de loja, fábricas, pessoas ricas que se divertem com futebol. Macau é um local muito rico. Para se ter ideia, o governo dá dinheiro para as pessoas locais. Sobre a Covid-19, como está a vida por ai? Aqui já normalizou (relacionado aos casos). Para normalizar de vez, só falta abrir as fronteiras. No momento estou em Zhuhai, impossibilitado de ir para Macau pois estrangeiros ainda estão proibidos, mesmo tendo visto de trabalho. Em Macau, o futebol ainda está parado. O país teve apenas um caso de Covid-19 desde o meio de abril.
Você está agora em Zhuhai, como é essa conexão Macau-Zhuhai e o trabalho que você desenvolve como treinador de crianças?
De Zhuhai pra Macau são só 15 minutos andando. A cultura muda muito pouco. A diferença é que Macau, por ser uma terra turística, tem uma variação muito elevada de preço, possibilidade de compras, variedade de lojas e também a questão da língua. Em Macau a maioria das pessoas falam inglês, são mais cultas, já em Zhuhai é mais difícil encontrar pessoas falando inglês e eles se surpreendem ainda ao encontrar o estrangeiro.
Em 2016, eu comecei a trabalhar com crianças, comecei a dar aula. Em Macau quando você vem para jogar, nós temos o dia inteiro livre para fazer o que quiser, já que só treinamos a noite. O dono da escolinha, também brasileiro, era meu treinador no Ka I. Ele me ofereceu então um dinheiro só pra auxiliar ele no treino, eu topei mais como uma terapia ocupacional e com pouco tempo o dinheiro que eu recebia das aulas já era suficiente para os meus custos de vida básicos.
No segundo semestre de 2016 apareceu uma oportunidade pra vir pra Zhuhai. Nós já vínhamos para cá para dar algumas aulas recreativas e um mexicano convidou a gente pra trabalhar num projeto que ele estava montando em parceria com o Grêmio. No princípio foi duro, nos dávamos quatro horas de aula e eram em horários de pico do sol. Aqui ou é 8 ou 80, ou é muito frio ou é muito quente.
Como é essa parceria com o Grêmio?
No começo era só uma franquia, mas em 2017 eles vieram aqui, o presidente Romildo [Bolzan Junior] junto de uma comitiva grande. Trouxeram uma equipe de transição do Grêmio para um torneio, foram campeões em cima do Santos, que também veio com uma equipe de transição. Jogaram Grêmio, Santos, uma equipe da Inglaterra e duas equipes chinesas. Com esse título do Grêmio, o nome da empresa foi elevado para caramba, ajudou muito na divulgação, fez a empresa ficar mais forte por aqui.
Você teve a oportunidade de jogar na Coreia do Norte, como foi essa experiência?
Antes de a gente ir, nos alertaram que a gente que lá não tem jeitinho, tem que fazer do jeito que eles estão pedindo. O cartão que você precisa preencher na chegada é coisa de louco. Eles pedem muita informação, três páginas de informações sobre sua vida. A tradução também não é bem feita, tem coisas que não fazem sentido.
E aí eu fui falar com um guarda dizendo que não estava conseguindo responder as perguntas, ele olhou meu passaporte assim e disse “Brasil?”, eu falei que sim, ele pegou meu cartão e rasgou, dizendo que eu não precisava disso (risos). Meu chefe de delegação me explicou que os brasileiros são muito bem vistos por eles.
No trajeto do aeroporto até o hotel, consegui enxergar um pouco do que é a vida lá. E é sofrida, viu? Estava muito frio e a gente via a turma trabalhando no campo, dentro da água, maior frio e eles dentro da água trabalhando. Outros voltando para casa em filas enorme na estrada. E o que me chamou a atenção, o mais surpreendente, é que as pessoas não conversavam e não riam, pareciam múmias.
No dia do jogo, a gente tomou maior susto chegando no estádio. Na entrada tem uma rampa enorme e de longe a gente via um mar branco na ponte e não sabíamos o que era. Quando entramos no estádio para reconhecer o gramado, tomamos um susto com o estádio lotado. Eles falam que tinham 34 mil, mas eu acho que tinham umas 40 mil pessoas. Esse jogo nós ganhamos de 3 a 2.
No segundo jogo, que já não tinha tanta gente, no máximo umas 10 mil pessoas, nós tomamos oito, foi a maior goleada que sofri na vida, não via a hora do jogo acabar (risos). Era o time que formava a base da seleção nacional. Você pegar um time semi-profissional e colocar contra uma seleção é bem desproporcional. A diferença de velocidade, tempo de raciocínio, era muito grande.
A gente fez algumas excursões lá e foi tranquilo, sem terror, não existe medo de ataque ou qualquer coisa do tipo. Tiramos várias fotos por lá, gravamos vídeo, só o que não pode é ser irreverente nas fotos, fazer graça. Teve uma hora que um jogador nosso foi dar um pulo pra tirar uma foto atrás da gente e um guarda viu e veio dizendo pra não fazer isso. Avisaram também que, se for tirar foto de monumento, não pode cortar a cabeça do grande líder.
O que me fez valorizar a vida foi justamente ver o quanto eles são controlados. A partir das 20h, não pode mais sair, eles apagam tudo e a gente tem que ficar em casa ou no hotel e acabou.
Eles racionam comida também. No hotel, nós estávamos jantando e um dos jogadores chineses, amigo meu, come demais. E ele tava comendo muito. Eu sempre fui muito observador, estava percebendo que tinham duas funcionárias olhando muito pra ele. Eu chamei o guia da delegação e perguntei a ele por que elas estavam olhando atravessado pra ele. Ele falou assim, “Simplesmente ele acabou de comer aqui em 15 minutos o racionamento delas de um mês”. Até me arrepio lembrando disso.
Foi uma experiência única conhecer o país.
Hoje você também administra o perfil @apaixonadoportreinos no Instagram. Pretende levar adiante essa ideia de ser treinador? Quais os planos futuros?
Como eu trabalho com recreação, nós temos que desenvolver treinos que mantenham a atenção da criança para que eles aprendam e se divirtam. Então, eu criei um arquivo pessoal e comecei a desenhar treinos. E quando eu olhei eu tinha mais de 500 treinos gravados. Então eu pensei, “Por que que eu vou ficar com isso aqui se eu posso compartilhar?” Daí decidi compartilhar. Hoje a gente alcançou já mais de 5 mil seguidores e eu recebo muita mensagem de pessoas agradecendo, mandando videos da execução do treino. É bem legal.
Se você me perguntar se eu gosto mais de jogar ou ser treinador, está bem parelho, as paixões estão bem parelhas.
Como eu não tenho nada que me prenda ao Brasil, eu pretendo ficar por aqui. Eu não fui um baita goleiro, mas eu pretendo me tornar um treinador de goleiros ou treinador mesmo profissional, diferente. Ser alguém realmente bom no que faz.
Como goleiro, eu esbarrei na altura, com 1,81, e em outras coisas que não estavam no meu controle, mas como treinador eu quero alcançar ser um profissional reconhecido pelo bom trabalho, com crianças ou profissionais.
Hoje meu objetivo é me capacitar. Estou terminando a Licença B da escola de goleiros da Argentina, equivalente a Licença Pró do Brasil. Ingressei na Licença B da CBF que vai ter em Pequim em novembro, começo a parte teórica em agosto. Estou terminando a Licença B da Ásia, a pandemia parou tudo, mas só preciso entregar um trabalho pra pegar a Licença B, já tenho a C inclusive. E alguns cursos da região aqui da China.
E aqui em Macau do jeito que eu vejo as coisas eu consigo jogar até uns 40 anos (risos). Vou jogar até enquanto tiver paixão.
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